Cuidados do tambor: crianças pequenas e apoio ao cuidador no brincar do Tambor de Crioula

Rita de Cácia Oenning da Silva e Karina Vanessa Muniz

“Esta noite tem Tambor de Crioula!”, avisa Meire a Hadassa, sua filha de 18 meses. Quando Hadassa nasceu, Dona Maria, avó da menina e mãe de Meire, rezou a São Benedito para fortalecer os pulmões e músculos fracos de sua neta. Agora que Hadassa está feliz e saudável, ela precisa retribuir ao santo com ritmo, dança e partilha de alimento. Ela convocou toda a comunidade – e seus tambores – para se reunirem para uma noite de tambor.

Roda de Tambor no quilombo urbano da Liberdade, São LuÍs – MA

Meire chega cedo com Hadassa na praça. A menina foi cuidadosamente arrumada e vestida exatamente como a mãe, com uma longa saia de chita, turbante. Elas se arrumaram com contas e colares e têm chinelos nos pés: quando os tambores começaram a soar, seus pés dançantes e descalços sentirão o chão de terra. Hadassa adora sentir a terra sob seus pequenos pezinhos.

Enquanto percussionistas e dançarinas se preparam para o evento, que acontece na praça no bairro Liberdade, São Luís do Maranhão – Norte do Brasil, Mariana, 20 anos, vizinha de Meire, pega Hadassa do colo da mãe. Caminha com a menina, apontando as plantas ao redor do pequeno jardim. Duas outras meninas mais velhas perguntam a Meire se podem ensinar a Hadassa os diferentes ritmos. Uma mostra para a bebê como tocar o tambor enquanto a outra, para atrair a bebê, gita sua saia branca e riem todas juntas com a dança. Hadassa está eufórica.

Apollo, de três anos, chega com seu avô, trazendo outro tambor. Apollo junta-se a Hadassa no piso de terra batida. O avô aproxima-se do instrumento central da festa mostrando como diferentes toques e batidas fazem cada tambor falar com vozes diferentes. Apollo bate em um dos tambores com um ritmo orgulhoso e firme.

Apollo experimentando os sons dos tambores

Cuidado no “brincar o tambor”

O estado do Maranhão tem a segunda maior população quilombola do Brasil e o Tambor de Crioula é uma tradição que perdura desde os tempos da escravidão, como forma de celebrar a cultura e a liberdade do povo preto. O ritual é festivo – os participantes dançam alegremente e improvisam em seus tambores – mas também é uma forma de agradecimento a São Benedito, ou São Benedito Manasseri, um santo afro-siciliano que se associou à divindade iorubá Ossain. Diferentes

“Sua benção, vovó?” vem a voz de uma criança pequena. Assim como a troca da graça de São Benedito por uma dança alegre, essas palavras são trocadas por beijos, abraços e elogios. Assim como os tambores, o ato de pedir bênçãos conecta passado e presente, crianças e idosos. À medida que os tambores começam a tocar, uma dança vigorosa dá espaço para os “encantados” – aqueles que passaram para o mundo do além – descerem. Cada criança aqui cresce sob os olhos de todos na comunidade, aprendendo a respeitar seus ancestrais e a trocar as pequenas graças e brincadeiras que fazem parte de um coletivo.

Durante o Tambor, qualquer um pode inventar um verso, trocado em chamada e resposta com o coro: uma introdução, um canto de louvor aos santos padroeiros ou orixás, uma homenagem às mulheres, um desafio, uma narração de eventos cotidianos, uma despedida são temas das toadas… Ritmos e rimas carregam a herança do grupo de geração em geração, repetidos, improvisados e transformados.

Crianças – até mesmo os bebês menores – estão sempre junto dos adultos: brincando, correndo, inspirando risadas e pedidos para repetir a dança. A criança entende que é o ser mais importante naquele momento e naquele lugar.


Um círculo de cuidado para os cuidadores

Enquanto Meire dança no centro do círculo, a atenção de todos se volta para ela. A bebê Hadassa observa com curiosidade e admiração a beleza e a graça dos rodopios e dos passos de sua mãe. Outras mulheres entram no círculo, escolhidas pelo cumprimento da que faz umbigo do dançante com o umbigo da pessoa escolhida para entrar na roda – a umbigada. Hadassa junta-se à dança; os homens tocam nos tambores os ritmos já conhecidos por todos. A comunidade canta e responde em coro, aplausos e gritos de apoio.
No Tambor de Crioula, a comunidade forma tanto um círculo literal quanto metafórico de cuidado para os cuidadores. Enquanto as mães desfrutam de um momento despreocupado no palco, seus bebês se movem constantemente de um colo para o outro. A experiência fortalece as conexões da vida cotidiana, que formam ali também uma rede de apoio no cuidado das crianças, que se estende ao cuidado dos cuidadores. Isso permite às mães viverem um momento de descontração e riso e encontrarem um lugar seguro para seus filhos enquanto brincam. Não é à toa que usamos a palavra “brincar” para descrever a prática de festivais e carnaval – brincar o tambor, brincar carnaval, brincar o boi… Assim como as crianças, os adultos também encontram nessas festividades um ambiente seguro para se divertir, socializar, dançar e compartilhar alegria.

Devido ao seu vínculo com a religiosidade popular africana, o Tambor é um ambiente bonito, feliz e motivador, valorizando a conexão humana, o significado ritual e o brincar. Ele cria bem-estar para mães, pais e crianças, reduzindo a ansiedade e quebrando o ciclo de estresse tóxico tão comum em um mundo de racismo, sexismo e grandes responsabilidades.

Como um espaço de empoderamento cultural e pessoal, o Tambor encarna a resistência contra centenas de anos de escravidão, racismo e políticas públicas discriminatórias. O Brasil foi o último país do hemisfério ocidental a abolir a escravidão, e nos 150 anos desde então, os afro-brasileiros têm sido forçados a viver em condições difíceis, em favelas urbanas, com pouca atenção dos governos, e suas praticas culturais e religiosas tem sido criminalizadas; excluído-os do mercado de trabalho e limitado seu acesso a boas escolas e universidades. Nos quilombos, favelas e outros espaços que os negros brasileiros construíram para si mesmos, rituais como o Tambor de Crioula formam um espaço para transmitir saberes e cultura às novas gerações e construir resistência.

Descolonizando políticas públicas

Em 2022, Rita da Silva, Kurt Shaw, diretores da Usina da Imaginação, em colaboração com a produtora Flor do Vento, coordenaram a produção de uma série documental que filmou mulheres de quilombos e comunidades indígenas nos estados do Maranhão e Roraima para compartilhar suas técnicas de criação de filhos. Como parte da plataforma MIMUS (Múltiplas infâncias, Múltiplos saberes), os filmes mostram a importância da cultura e do jogo entre idades para apoiar a saúde física e mental dos cuidadores de crianças pequenas e das crianças em geral.

Embora o Tambor de Crioula exemplifica bem a importancia dos momentos rituais para o cuidado das crianças, ele é apenas um exemplo entre muitos: o povo Guajajara, por exemplo, celebra os primeiros passos de um bebê com três dias de música, dança, rituais e festas; o povo Ye’kuana faz questão de levar seus bebês para a selva todos os dias para “tecer um fio invisível” que sempre os ligará à natureza. Festivais, música, rituais e brincadeiras comunitárias são espaços coletivos de empoderamento, berços de resistência e apoio para uma população pouco compreendida pelas políticas públicas.

Durante muitos anos, as políticas de primeira infância no Brasil frequentemente tentaram impor práticas europeias e norte-americanas às populações afro-brasileiras e indígenas. Por exemplo, esforços bem-intencionados para motivar as mulheres a dar à luz em hospitais minam séculos de saberes das parteiras tradicionais que sempre forneceram apoio pré-natal essencial. Em visitas domiciliares, visitadores de programas para a primeira infância pedem aos pais para brincarem com brinquedos de plástico com seus filhos, subvertendo a brincadeira ativa na natureza e o cuidado tradicional dado por crianças mais velhas às mais novas. Nutricionistas favorecem frutas desconhecidas e caras, como maçãs ou peras, em vez de frutas prontamente disponíveis, como açaí e cupuaçu. Hospitais e escolas insistem em lidar apenas com os pais e não com os avós, que comumente criam crianças em grupos afro-brasileiros e indígenas.

Argumentamos que as políticas devem, em vez disso, ser construídas de dentro para fora, baseadas nas epistemologias das diversas comunidades e suas formas de pertencimento. As políticas devem ser feitas com eles e por eles, não para eles, respeitando seus espaços coletivos e práticas de apoio, cuidado e empoderamento para crianças pequenas e seus cuidadores.

Comunidades de base, como as indígenas, afro-brasileiras, romani, rurais, periféricas lutam por políticas públicas descolonizadas, que apoiem práticas já existentes como o Tambor, que respeite a apoia múltiplas infâncias e suas múltiplas práticas de cuidado.

Esses grupos têm formas de cuidar coletivas e eficazes, mesmo que nunca tenham se tornado política nacional: o povo Kaingang, por exemplo, lutou para usar financiamento público para creches destinadas a seus territórios a fim de apoiar espaços onde os avós cuidam das crianças pequenas, como têm feito há muito tempo. Fizemos parte de um movimento para contratar parteiras e xamãs em hospitais públicos em cidades com grandes populações indígenas. Tanto em Roraima quanto no Xingu, médicos formados no ocidente trabalham junto com praticantes de medicina tradicional para desenvolver políticas e treinar equipes médicas com as técnicas de cuidado e do nascer diferenciadas das ensinadas nas escolas de medicina.

Reconhecer e fortalecer esses ambientes rituais e suas práticas culturais, favorecer a vida comunitária e a produção de significados coletivos: esses elementos formam a base para políticas públicas que nutrem formas diversas de desenvolvimento na primeira infância e apoia pais e avós, garantindo respeito às suas tradições e ancestralidade.

Entrevista com Karina Muniz – O Aquilombar da Liberdade

 

Rita da Silva
Nasceu em uma grande família de agricultores no sul do Brasil, onde aprendeu a apreciar os mistérios da natureza: algo que continua a inspirar seu trabalho e pesquisa com crianças. Doutora em Antropologia, sua pesquisa etnográfica examina como as crianças são protagonistas de narrativas e performances. Depois de anos lecionando na universidade, ela passou a trabalhar no terceiro setor e como realizadora audiovisual. Agora é diretora executiva da Usina da Imaginação, coordenando programas com comunidades em todo Brasil (como MIMUS, Inspiração, etc.). Dirigiu muitos filmes, incluindo “O outro lado do outro” (2019), “Wuitina Numiá” (2021) e Aiurê (em pós-produção). Mãe de Helena Iara, Rita mora em Florianópolis, Brasil.

Karina Muniz
Karina Vanessa Muniz é líder quilombola no Quilombo Urbano da Liberdade, em São Luís, Brasil. Especialista em psicologia social e antropologia na Faculdade Pitágoras/Anhanguera e coordenadora pedagógica no Centro de Iniciação ao Trabalho (CIT), em São Luís. Pós-graduada em história e cultura afro-brasileira, ela trabalhou como coordenadora de projetos e políticas públicas na União de Homens e Mulheres Negras pela Igualdade (UNEGRO). Karina é membro da ANPSINEP, da Articulação Nacional de Psicólogos e Pesquisadores Negros; membro do GT de Relações Étnico-Raciais do Conselho Regional de Psicologia do Maranhão; e coordenadora do Grupo de Pesquisa Diálogos em Psicologia e Relações Étnico-Raciais na Universidade Federal do Maranhão.

Bibliografia

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6041820/: Fancourt D., Perkins R., Ascenso S., Carvalho L. A., Steptoe A., & Williamon A. (2016). Effects of group drumming interventions on anxiety, depression, social resilience and inflammatory immune response among mental health service users. PLoS ONE, 11(e0151136), 1–16.,

(Cohen G. D., Perlstein S., Chapline J., Kelly J., Firth K. M., & Simmens S. (2006). The impact of professionally conducted cultural programs on the physical health, mental health, and social functioning of older adults. The Gerontologist, 46(6), 726–734.
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CLARICE MOREIRA PORTUGAL MONICA DE OLIVEIRA NUNES MARIA FERNANDA CRUZ COUTINHO, Caminhos de axé na busca por cuidado: uma análise preliminar da experiência de crise de adeptos do Candomblé em processo de desinstitucionalização em saúde mental. Physis 29 (04) 25 Nov 2019 https://doi.org/10.1590/S0103-73312019290416

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