Como superar a polarização que marca o mundo atual? Para os diretores da Usina da Imaginação, Rita Oenning da Silva e Kurt Shaw, a resposta está em algo que aprendemos desde cedo: na brincadeira.
Essa foi a tônica da participação da dupla no episódio mais recente do podcast internacional Stories of Impact, produzido pela Talkbox Productions com apoio da Templeton World Charity Foundation. O episódio, intitulado “Resistência e renovação brasileira através da brincadeira coletiva”, aborda a potência criativa das infâncias e das culturas afro-brasileiras, indígenas e periféricas, destacando o trabalho da Usina da Imaginação com crianças e comunidades diversas, promovendo o encontro entre mundos que normalmente não se cruzam: favelas e condomínios, saberes populares e acadêmicos.
Ouça aqui o episódio completo em inglês ou leia a baixo a transcrição!
Stories of Impact – Episódio T8E13: Shaw & da Silva
“Resistência e renovação brasileira através da brincadeira coletiva”
Tavia Gilbert (apresentadora):Este é o Stories of Impact, a arte e a ciência do florescimento humano. Em cada episódio, viajamos pelo mundo para explorar as interseções entre ciência e espiritualidade. Sou sua apresentadora, a escritora Tavia Gilbert, e, juntamente com o jornalista Richard Sergay, toda primeira e terceira terça-feira, olhamos para antigas tradições sob uma nova perspectiva, ouvimos as novas gerações enquanto elas idealizam soluções inovadoras e aprendemos novas maneiras de dar sentido à vida moderna. Nos últimos cinco anos, exploramos histórias de inúmeros cientistas cujas pesquisas criteriosas revelam como eles respondem a grandes perguntas e resolvem grandes problemas. Compartilhamos conversas sobre estudos realizados em laboratório e em campo.
Bem, o campo de estudo de hoje é o Brasil. Os laboratórios são ruas movimentadas de cidades e florestas verdejantes. E a grande questão? O que acontece quando você para de temer e lutar contra a diversidade e começa a explorar e abraçar a diferença? Os pesquisadores com quem aprendemos hoje encontraram suas respostas por meio da brincadeira — na música, na percussão, na dança, nas artes marciais, na comida, nos rituais e em experiências compartilhadas. Começaremos com o antropólogo norte-americano Kurt Shaw, que encontrou seu significado e propósito no Sul.
Kurt Shaw: Principalmente quando você cresce na Academia, você tem a sensação de que sério e importante são sinônimos. No Brasil, aprende-se que lúdico e importante são sinônimos, e essa mudança de perspectiva é tremendamente importante. Durante todos os meus anos estudando hebraico, grego e copta, essa seriedade, na verdade, me trouxe muito menos realização e muito menos encontro com o outro do que a brincadeira.
Tavia Gilbert: Shaw e a antropóloga Rita da Silva são cofundadores e codiretores executivos da Usina da Imaginação, uma organização sem fins lucrativos brasileira que se concentra em empoderar comunidades marginalizadas e infâncias diversas no Brasil. Da Silva é natural do Brasil e cresceu imersa na rica e lúdica cultura do país. Aliás, a maior virtude do Brasil, poderia dizer da Silva, é a brincadeira. Brincar é como os brasileiros aprendem juntos, se conectam em comunidade e criam significado. Aqui está da Silva:
Rita da Silva: Estamos sempre procurando a outra pessoa e chamando essa pessoa para brincar com a gente. E aí, brincando lá fora, brincando juntos, abrimos a casa para as pessoas, viemos beber, brincar e cantar juntos. Também para competir, para estar vivo, para brincar, para brincar, para fazer música, para mudar, para se movimentar. E também para festejar bastante juntos, porque, sim, não é uma festa como se fôssemos nos divertir, mas é para animar as pessoas a fazerem coisas juntos.
Tavia Gilbert: Brincar não é apenas diversão — é um caminho criativo e construtivo para a sobrevivência. Da Silva afirma que a vibrante cultura lúdica ajudou as comunidades brasileiras a sobreviver e prosperar, apesar de um histórico de dificuldades.
Rita da Silva: Estamos sempre tocando arte popular na rua. Não só a arte, mas a cultura é uma forma de mostrar que você não é igual ao outro. Você tem algo a oferecer, uma forma de se conectar. É por isso que eu acho que a arte, e também a cultura, são tão importantes. É essencial aprender com o corpo, não apenas com a mente, e também entender que você não está sozinho neste mundo.
Tavia Gilbert: Da Silva aponta para a resistência criativa e a resiliência dos quilombos, comunidades formadas por pessoas de origem africana que escaparam do tráfico transatlântico de escravos do Brasil colonial.
Rita da Silva: O Brasil também é um país enorme, com muitos povos indígenas, comunidades negras, quilombolas. E eles são incríveis. Há muito tempo vivem em situações muito difíceis, estão resistindo. E se estão resistindo, estão criando também a melhor maneira de mostrar o que têm a oferecer uns aos outros.
Kurt Shaw: Há uma longa história no Brasil de conflitos transformados em beleza. Conflito transformado em estética. A capoeira, na verdade, começou como uma arte marcial, usada por povos escravizados para sonhar em lutar contra os brancos. Depois, foi usada como uma forma de guerra entre gangues e, gradualmente, foi transformada em uma dança onde as pessoas competem entre si. O samba é a mesma coisa. O samba vem de diferentes favelas que podem ter conflitos entre si, colocando tudo em risco para criar as fantasias mais bonitas, a dança mais incrível, a música mais impressionante — tudo para mostrar que são os melhores.
Tavia Gilbert: O Brasil foi o último país das Américas a proibir a escravidão, em 1888, e as feridas deixadas na paisagem e na psique do país permanecem até hoje. Shaw explica:
Kurt Shaw: O Brasil sempre foi um dos países mais divididos do mundo. Quando começamos a trabalhar em Recife, uma cidade no nordeste do Brasil, era a segunda cidade mais desigual do mundo, depois de Luanda, em Angola. Mas também é uma cidade onde o processo de colonização e a forma como os europeus chegaram ao Brasil estabeleceram uma elite europeia muito pequena, que importou escravos de maneiras absolutamente terríveis e destrutivas, destruindo o mundo e genocidando os povos indígenas. Essa história se reflete na construção atual de condomínios ricos onde as pessoas vivem uma vida que qualquer pessoa na Europa ou nos Estados Unidos reconheceria — com escolas particulares, eletrodomésticos modernos, serviços de streaming como Spotify e Netflix. E então, do outro lado — muitas vezes literalmente do outro lado do muro — estão as favelas, onde as pessoas constroem suas próprias casas, muitas vezes de papelão, onde o assentamento é extremamente informal, onde o Estado está presente apenas como força policial, e não como provedor de serviços sociais, eletricidade, esgoto ou qualquer outro tipo de infraestrutura básica. E essa é a realidade com a qual estamos trabalhando. E ao mesmo tempo em que essa divisão é física — refletida na arquitetura e na geografia urbana — ela também é mental. Está presente na maneira como as pessoas aprenderam a pensar: a ideia de que só devemos nos comunicar com certos tipos de pessoas.
Tavia Gilbert: E hoje, os cidadãos brasileiros enfrentam desafios com os quais pessoas do mundo todo estão lutando. Shaw afirma que os brasileiros…
Kurt Shaw: Estamos nos deparando com algo semelhante, uma divisão crescente entre classes, entre raças, entre gêneros, entre pessoas de diferentes orientações sexuais, todas essas coisas diferentes. A tentativa do Brasil de superar isso — seus fracassos, seus sucessos — é uma lição importante para o mundo.
Tavia Gilbert: Apesar das feridas psíquicas da escravidão, do genocídio e da desigualdade que persistem, muitos brasileiros continuam não apenas sendo pessoas brincalhonas, mas também tão curiosos, criativos e talentosos quanto qualquer pessoa que Shaw possa ter conhecido na universidade, diz ele.
Kurt Shaw: Quando eu estava fazendo minha pós-graduação em Harvard, alguns amigos e eu nos deparamos com estudos que mostravam o imenso número de crianças vivendo nas ruas na América Latina. Abandonei Harvard, comecei a criar uma organização que trabalhava com crianças de rua e descobri que o cinema era uma forma incrivelmente poderosa de fazer isso. Crianças que nunca aprenderam a ler e escrever, que não frequentaram a universidade, mas que estão o tempo todo pensando no que importa na vida. Porque quando você está na rua, você está pensando o tempo todo. Você está sempre pensando em tentar entender por que vale a pena ir no dia seguinte. E assim foi a forma de comunicação entre eles. O cinema se tornou uma forma realmente poderosa para as crianças se comunicarem entre si, para compartilharem suas percepções, seus conhecimentos. E tem sido poderoso.
Tavia Gilbert: Shaw e da Silva viram no cinema uma oportunidade de transpor as fronteiras sociais entre crianças que viviam em mundos completamente diferentes, ajudando a criar uma troca de ideias. Então, eles trouxeram crianças das favelas para junto de crianças que cresceram ricas em condomínios do outro lado do muro.
Kurt Shaw: E assim, as crianças de todas as esferas da vida, crianças da favela e crianças da classe média alta. Crianças negras e crianças brancas. Crianças rurais e crianças urbanas. Da Bahia, do norte do Brasil, daqui do sul, do oeste, se juntavam e faziam filmes juntos online. Era algo incrivelmente poderoso. Eles criavam as histórias, faziam a música para elas. E essa era uma maneira realmente poderosa de criar, de desenvolver empatia entre crianças de todas as fronteiras sociais.
Tavia Gilbert: Shaw e da Silva queriam se aprofundar mais nesse trabalho e reconheceram que uma filosofia específica, mantida principalmente entre os povos da Amazônia e afro-brasileiros, tornava o Brasil o lugar perfeito para explorar como a união de pessoas diversas poderia ajudar a curar a polarização.
Kurt Shaw: No Brasil, uma das grandes virtudes que, na minha opinião, não se reflete tanto nos Estados Unidos ou na Europa é estarmos juntos. Estarmos juntos é um dos objetivos da vida, e acho que essa é uma maneira muito importante de pensar. Entre os povos da Amazônia, em particular, mas também entre os afro-brasileiros, um dos mandamentos éticos é poder ver o mundo pelos olhos do outro, sentir o chão através dos pés descalços do outro, poder saborear a comida ou cantar as músicas do outro. Existe uma ética na cultura indígena e afro-brasileira que exige esse encontro. E não se trata necessariamente de ouvir ou aprender com alguém, mas sim de viver a vida dele. É cantar suas músicas, é comer sua comida. É uma chance de aprender; que a diversidade é uma riqueza. E que a diversidade religiosa, que a diversidade cultural é uma riqueza.
Tavia Gilbert: Adotar a perspectiva da diversidade como riqueza criou uma transformação completa para Shaw.
Kurt Shaw: O par de olhos americano é menos importante do que o par de pés americano, o que quer dizer que a minha incapacidade de dançar um samba, a minha tentativa de me tornar um jogador de futebol tão bom quanto os outros jogadores de futebol de 50 anos com quem jogo, a necessidade de andar por essas trilhas incríveis na selva ao redor da nossa casa, isso é muito mais importante do que os olhos porque me torna humilde e me obriga a viver em contato com este mundo que tem tanto para me ensinar. Isso para mim é maravilhoso. Costumamos dizer em inglês: “veja o mundo através dos olhos de outra pessoa”. E isso é importante nas culturas indígenas e afro-brasileiras, mas você também quer sentir isso através das mãos deles no tambor. Você também quer sentir isso através das solas dos pés deles enquanto caminha pela trilha da selva, pelas ruas esburacadas da favela. E então é mais do que apenas olhos. E tem sido muito importante para mim ter essa humildade de entender esse cheiro e o toque dos meus pés — isso é tão importante quanto qualquer outra coisa.
Tavia Gilbert: Tanto Shaw quanto da Silva afirmam ter sido pessoalmente enriquecidos pela cultura única do Brasil, particularmente pelo que aprenderam trabalhando com crianças diversas. Shaw conta que aprendeu mais sobre a relação e a importância da brincadeira criativa e de acolher o “outro” com uma adolescente inesquecível. A metáfora que ela usou foi “Nós”.
Kurt Shaw: Há certos nós com os quais todos nós lutamos. E quando alguém encontra uma solução para isso na música, eu ouço isso, de repente a solução, a maneira como desatar ou cortar esse nó me vem à mente. E então, para ela, a cultura e a música eram como uma sinapse que vai de um cérebro para outro. Então, há uma transcendência que acontece com a cultura. Não é um encontro com o outro, é um compartilhamento com o outro. Somos eu e alguém desatando um nó juntos quando ouvimos o mesmo acorde, quando tocamos o mesmo ritmo na zabumba. Acho que isso foi uma imensa inspiração. Uma garota tão inteligente, que acho que desatou um nó, um nó filosófico que remonta a quase toda a tradição filosófica ocidental. E ela descobriu isso aos 15 anos porque é musicista.
Tavia Gilbert: Shaw e da Silva acharam que essa era uma maneira poderosa de pensar sobre a construção da empatia e sobre superar essas bolhas nas quais vivemos, onde é impossível conversar com pessoas diferentes de nós. Desde então, Shaw e da Silva têm buscado crianças de todas as idades como professores. Eles trabalharam com crianças de 8 meses a 18 anos.
Kurt Shaw: Um bebê também comunica certas coisas sobre a importância de estar com outras pessoas. Você só precisa aprender a ouvir.
Tavia Gilbert: Da Silva concorda.
Rita da Silva: As crianças normalmente abrem a mente das pessoas. Quando uma criança nasce, não somos mais a pessoa que éramos. Precisamos nos transformar. Como outra pessoa, você também precisa aprender a se comunicar, a se relacionar com a criança. E o mesmo processo ocorre quando a criança vai para a comunidade ou para a escola. Você precisa aprender a ter contato com mais pessoas. Neste mundo, somos sempre muito segregados, e as crianças nos abrem esse espaço: como entramos em contato com outras pessoas e abrimos nossa mente para o outro. Na maior parte do tempo, estou ouvindo e observando o movimento, o jeito como cantam. Me sinto como um bebê. E ser um bebê também é estar aberto a aprender o tempo todo, a experimentar e a tocar. E acho que foi isso que mais aprendi, essa posição, o “como?” — é importante. Estou aprendendo o tempo todo. Estou aberto. Estou experimentando a vida. Sinto como se um bebê estivesse recomeçando. É exaustivo, mas também muito interessante, porque não estou preso em pensamentos. Estou me movendo e sinto que isso é bom para mim, mas bom para as pessoas também, porque elas sentem que estou valorizando o que estão fazendo. Estou tentando aprender, estou tentando entender o que estou pedindo e isso é tão bom.
Tavia Gilbert: Então, muitas crianças brasileiras nascem em uma grande diversidade… e em uma cultura com espaço para tolerância e respeito pelos outros.
Kurt Shaw: Se você pensar na história dos grupos amazônicos, eles podem ser muito diferentes. Você pode ter um grupo Baniwa de um lado do rio e um grupo Tucano do outro, que falam línguas completamente diferentes, que pensam o mundo de maneiras diferentes, têm sistemas míticos diferentes. Esses grupos diferentes são polarizados. Eles não veem o mundo da mesma maneira. São muito diferentes uns dos outros, mas veem essa diferença como algo que pode fazer cada um deles crescer. Há uma chance de aprendizado. Eles não querem exterminar o outro, não querem que o outro lado acabe. Porque eles entendem que o outro lado tem algo a lhes ensinar. É essa dinâmica que os desafia, que os faz crescer, porque estão em conflito, em relacionamento, em troca com as pessoas que estão do outro lado. É uma maneira incrível de pensar como se deve relacionar com os outros. É uma maneira muito diferente da maneira como os europeus tradicionalmente pensavam sobre o relacionamento com o outro.
Tavia Gilbert: O modo de pensar da Amazônia pode ajudar populações do mundo todo a evoluir como seres humanos e evitar que recriemos infinitamente as mesmas feridas, diz Shaw.
Kurt Shaw: Se tivéssemos uma maneira amazônica de pensar sobre isso, seria algo realmente estranho: alguém que tem um desejo diferente por um gênero diferente. O que posso pensar sobre isso? O que isso me ensina sobre desejo? O que isso tem a me ensinar sobre como podemos nos amar? Alguém trans, o que isso me ensina sobre o que significa ter uma conexão entre seu corpo, seu gênero e sua sexualidade? Há algo a ser aprendido aí. Mas se tivermos essa ideia de que o outro deve ser exterminado, que um odeia o outro e que o outro não deveria existir, esse é o problema. É muito bom que sejamos realmente diferentes. É muito bom que sejamos extremamente diferentes, que sejamos polarizados dessa forma. Não queremos que todos sejam apenas uma mistura chata no meio. Mas a questão é que não devemos nos odiar. Não devemos pensar que, porque alguém é diferente, essa pessoa deve ser exterminada.
Tavia Gilbert: Da Silva acrescenta.
Rita da Silva: Pessoas em culturas diferentes pensam de maneiras diferentes. E isso é um desafio para nós. Mas é tão bom quando você está aberto a se conectar, aprender e valorizar o que as pessoas estão fazendo, sem tentar matá-las como a colonização fez.
Tavia Gilbert: O respeito de Shaw e da Silva pela sabedoria de bebês, crianças de rua, comunidades indígenas e pessoas historicamente marginalizadas desencadeou uma pesquisa sobre o que o resto do mundo poderia aprender com o pensamento dos brasileiros, diz Shaw.
Kurt Shaw: Estamos trabalhando com dezenas de afro-brasileiros e indígenas — começamos dizendo pensadores ou intelectuais, mas descobrimos que são muito mais pessoas que gostam de pensar. Não precisam ser necessariamente pessoas da universidade, não precisam ser pensadores profissionais, mas são pessoas que gostam de pensar, que podem ser crianças, músicos, artistas e professores. Vamos valorizar o conhecimento de tantas pessoas que a academia, o governo, que o conhecimento geralmente não ouve, mas que pensam muito e gostam de pensar sobre isso.
E acho que uma das maiores coisas que eu gostaria que este projeto levasse aos outros é dizer que não são apenas os professores universitários que pensam e são inteligentes. Todos são inteligentes. Você só precisa descobrir por que eles são inteligentes e como podemos aprender com eles.
Como vivemos em um mundo polarizado, é muito difícil ouvir e aprender uns com os outros. E é nisso que temos trabalhado: como essas perspectivas — e dizemos perspectivas literalmente porque, quando um xamã entra em transe, ele está tentando ver o mundo através dos olhos de uma onça ou de um gavião-real. E essa é uma perspectiva — como essas perspectivas de mudança de perspectivas nos permitem ver o mundo através dos olhos do outro e, portanto, conversar uns com os outros e criar comunidades que vão além dessas bolhas em que vivemos? Esses encontros de ritmo, de comida, de troca, de dança em grupo, trazem mais riqueza para todos nós. Quando você aprende o ritmo de outra pessoa, seu ritmo se torna mais rico.
Tavia Gilbert: O que o projeto de Shaw e da Silva pretendia descobrir?
Rita da Silva: Como as pessoas estão tentando superar a separação, a segregação, como podemos sentir que podemos conversar com o outro, as maneiras que as pessoas encontram para estar em contato, para se envolver culturalmente com o outro, mais do que apenas conversar com o outro, mas conversar com o corpo, conversar com o som, com a música.
Kurt Shaw: Nossa teoria de trabalho era que, devido a essa riqueza cultural e a essa ideia do dever ético de ver o mundo através dos olhos do outro, tão presente no Brasil, pessoas que se envolvem culturalmente com o outro teriam insights realmente importantes sobre a maneira como um se relaciona com o outro. Essa hipótese de que há muitas pessoas pensando sobre a alteridade e por que é tão difícil conversar com outras pessoas e quando elas tiveram sucesso, os insights que obtivemos de pessoas envolvidas em escolas de samba, líderes indígenas, crianças que dançam maracatu, que é uma espécie de expressão musical afro-brasileira, todas essas coisas diferentes, realmente mostrou que é bastante verdade a quantidade de reflexão que tem sido feita.
Tavia Gilbert: E que insights eles obtiveram?
Kurt Shaw: Quase tudo o que ouvimos dessas diferentes pessoas, que gostam de pensar em tantas circunstâncias diferentes, é que o desafio no mundo contemporâneo é que não estamos juntos o suficiente. Que a rua não é mais um lugar onde as crianças brincam.
Que não temos mais festas de quarteirão como antigamente. Que não existe aquela troca espontânea que possibilitava o encontro com pessoas diferentes de mim. E acho que o Brasil tem uma grande noção disso por causa dos muros que foram construídos durante o período colonial, durante a ditadura militar. As pessoas entendem como esses muros são construídos. E, ao mesmo tempo, por causa desses fenômenos culturais incríveis como a capoeira, o samba, o dabocuri dos povos indígenas, elas também entendem como superá-los. Se existe uma teoria universal que emergiu disso, é essa? Uma das razões para esse mundo polarizado em que vivemos é porque as pessoas não têm espaços para brincar juntas.
Tavia Gilbert: Da Silva e Shaw querem levar seu estudo sobre como os brasileiros cantam e dançam, comem juntos, contam histórias e praticam rituais, e desenvolver um guia para ser usado por planejadores urbanos, associações de bairro e famílias.
Kurt Shaw: Por causa dessa questão de estarmos juntos, um dos grandes resultados deste projeto será um manual, que ensinará às pessoas como transformar sua rua em uma rua onde as crianças brinquem novamente. Como criar um espaço onde bairros são bairros e não temos mais tanto medo das pessoas, onde não estamos presos ao celular o tempo todo? Pessoalmente, acho que esse manual provavelmente será uma das coisas mais impactantes que faremos. Nós vemos isso como um kit de ferramentas que pode ser útil para muitas pessoas diferentes que entendem o quão importante é que a rua volte a ganhar vida, especialmente para as crianças, mas também para os adultos.
Tavia Gilbert: A cura e a conexão que vêm da brincadeira em qualquer idade ressoam com Shaw.
Kurt Shaw: Geralmente, nos Estados Unidos, falamos sobre brincadeiras com as crianças. No Brasil, todas as culturas são brincadeiras. Da mesma forma que tocamos música em inglês nos Estados Unidos, vocês também jogam capoeira, vocês também tocam samba, vocês também fazem teatro. Minha impressão é que o desafio da polarização vem muito disso, da falta de espaço, da maneira como nossas cidades, da maneira como nossa mentalidade, da maneira como a internet foi construída para dificultar a prática de tocar juntos.
Tavia Gilbert: O que Shaw e da Silva aprenderam com seu estudo brasileiro sobre a cura da polarização por meio da diversidade pode ser útil para outras comunidades? Outros países?
Kurt Shaw: A mesma premissa básica de como podemos ressuscitar essa vida pública de estarmos juntos em ummundo de tecnologia moderna, esse é o desafio. Mas os passos básicos, eu não acho que sejam tão diferentes se você estiver na Índia, na Holanda, no Brasil, na Colômbia ou até mesmo nos Estados Unidos.
Tavia Gilbert: Shaw e da Silva estão otimistas de que seu trabalho pode ajudar a diminuir divisões, reduzir a polarização e melhorar o florescimento humano?
Kurt Shaw: No nível dos encontros individuais, imensamente otimista. O momento em que temos crianças de mundos diferentes se reunindo, adultos de mundos diferentes se reunindo e se olhando nos olhos, sentados juntos, conversando, comendo, comendo juntos, tocando bateria, brincando com nossos filhos. Nesse sentido, sou realmente otimista porque acho que as pessoas querem aprender umas com as outras. Mas acho que as estruturas de comunicação com as quais vivemos hoje em dia tornam isso muito difícil.
Tavia Gilbert: Da Silva diz:
Rita da Silva: Sinto que também estou estudando o que aprendi no começo da minha vida. Estou brincando com tudo isso na minha mente e dizendo que posso mudar algumas situações. Acho que estar na rua com as crianças, fazer filmes com elas, ficar com elas é o que é positivo na minha vida. E não apenas a posição de ser mãe, que é boa — é legal, é linda também — mas tentar aprender com as crianças e tentar entendê-las. Elas estão criando tudo como loucas porque tocam em tudo. Elas se mexem, fazem bagunça, brincam na lama. E elas estão abrindo muitas coisas para nós, e estão sentindo o corpo crescendo, criando sinapses, e isso é muito positivo para mim.
Estou a maior parte do tempo com pessoas na selva e sinto que essa é a melhor maneira de viver: não ficar na universidade o tempo todo, brigando uns com os outros porque você tem o melhor trabalho, mas ser parte da comunidade, nadar, pular e dar vida ao seu corpo. Não estou romantizando a vida indígena. Mas o que estou dizendo é que é muito interessante entender a diversidade. A diversidade cultural é agradável. É boa. E não o contrário.
Tavia Gilbert: Adoro essa história. Construir pontes por meio da expressão criativa, da música, da comida e da comunidade — se isso não te alegra e te dá esperança, não sei o que mais te dará.
Agradecemos à Epidemic Sound, Sounds of the Earth e The Amazonic pela música do episódio desta semana. Esperamos que vocês voltem em duas semanas para mais um episódio. Enquanto isso, compartilhe o Podcast Stories of Impact com alguém que você acha que
adoraria. Adoraríamos saber sua opinião. Você pode entrar em contato pelo storiesofimpact.org.
Este foi o Podcast Stories of Impact com uma entrevista de Richard Sergay. Escrito e produzido por Tavia Gilbert para a Talkbox Productions. Música de Aleksander Filipiak. Mixagem e masterização de Kayla Elrod. Produção executiva de Michele Cobb. O Podcast Stories of Impact conta com o generoso apoio da Templeton World Charity Foundation.