A bola em forma de Terra erguida por Wynoã Tukumãí, 1 ano e 4 meses, durante a oficina Terra Sonhada, traz uma imagem única para pensarmos a cultura das infâncias e os impactos que ela tem no mundo. Brincar com uma bola é já tomar nas mãos o saber primordial das infâncias de toda uma humanidade; é jogar com a ciência das formas geométricas, é jogar o jogo do brincar desde suas origens, a cada criança que toca uma bola. Aí já a cultura de toda a humanidade se apresenta na infância.

Mas quando uma criança pequena brinca com uma representação da Terra, uma imagem ainda mais potente e profunda sobre o momento que vivemos no mundo se apresenta. Quando a criança pega nas mãos esse brinquedo e entrega à sua mãe, criam um momento mágico – e simbólico – a terra nas mãos de uma criança pequena sendo entregue a um adulto. Esta nas mãos de todos nós essa bola.
Essas cenas ocorreram durante a oficina Terra Sonhada, conduzida por mim, Rita Oenning da Silva (Usina da Imaginação) dentro do Seminário e Festival Cultura Infância e Natureza: Agir pelo planeta, realizada no Museu do Amanhã (RJ) entre os dias 08 a 11 de outubro de 2025. A oficina trouxe a perspectiva de 14 crianças e adolescentes sobre a terra que sonham, incluindo entre as crianças duas na primeira infância (01 e 5 anos), duas recém completado 7 anos, 6 entre 09 e 12 anos e três entre 13 e 15 anos.

A participação das crianças se fez dentro do “Festival e Seminário Cultura das Infâncias e Natureza: Agir pelo Planeta”, um evento criativo e lúdico que destacou a cultura das crianças de diferentes territórios e biomas brasileiros na relação com a natureza, e com elas construiu processos expressivos e reflexivos sobre seus saberes, seus sonhos de um outro mundo possível que nos inspire a enfrentar a crise climática.
Promovido pelo Ministério da Cultura (MinC), por meio da Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural e da Diretoria de Promoção da Diversidade Cultural, junto à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ao Museu do Amanhã, que sediou as atividades do Festival, o evento foi realizado em parceria com organizações da sociedade civil reconhecidas como Pontões de Cultura do Programa Cultura Viva, como a Usina da Imaginação, a qual represento, e a Companhia Cultural Bola de Meia. Os esforços conjuntos entre equipes coordenadas por Karina Miranda Gama, Patrícia Dornelles e por mim na Terra Sonhada fez o evento possível. E resultado desse trabalho coletivo possibilitou trocas culturais e reflexivas, arte, brincadeiras e um lindo seminário em que Mestres de saberes compartilharam experiências e inspirações.
A proposta fortalece a perspectiva da centralidade das infâncias como sujeitos culturais conectados com o mundo natural nas agendas de sustentabilidade, cultura e direitos, valorizando a participação ativa e a escuta qualificada das crianças em processos criativos e de mobilização socioambiental, e construir um debate qualificado e brincante inspirada nas diretrizes da Conferência Temática Cultura Infância que aconteceu em Porto Alegre em 2023, da qual também organizei e mediei a curadoria e participação das crianças em dialogo com o Minc e o Grupo Nacional Cultura Infâncias, que vem debatendo a importância da cultura para a vida das crianças.

As crianças que participaram do evento trouxeram ainda os desafios para construir um mundo mais inclusivo e sustentável na Terra Sonhada. Trouxeram contribuições de diferentes territórios, de climas e biomas diversos (Pampa, da Mata Atlântica, do Pantanal, da Caatinga, do Cerrado e da Amazônia), com símbolos e diferenças que elas sentem que estão acontecendo em seus territórios e que elas gostariam de valorizar ou de melhorar. Também apontaram ideias de como os adultos e governantes podem apoiar o processo de inclusão e regeneração dos ambientes. Uma das questões trazidas pelas crianças foi a dificuldade que elas tem enfrentado no convívio com a natureza e a supressão do tempo de brincar e estar juntas nas escolas. Relataram como em grande parte das escolas, a natureza não esta presente ou não é valorizada e que cada vez mais os tempos de recreio diminuem, e elas não conseguem tempo para estar livremente entre pares. Avaliam que isso dificulta muito seu desenvolvimento e o desenvolvimento de vínculos interpessoais entre os pares e entre classes.

A valorização da água foi especialmente trazida nesse processo, tanto porque tivemos entre nós crianças impactadas pelas enchentes e pelas secas, mas também porque as crianças sabem muito bem que sem água nada somos – essa foi uma frase de Iasyara (09), criança da etnia Potiguara, que tem participado da recuperação do Rio no seu território na Paraíba e que restou como brincam dentro do rio. Eduarda (11) relatou como foi a enchente no Rio Grande do Sul, e o drama de morrerem pessoas, perder animais, casas, e ver tantas parentes sendo impactados por essa catástrofe ambiental. Athos (12) relatou a importância da agua no Pará, onde o desmatamento, o calor intenso e a falta de umidade no ar dificulta inclusive respirar nos períodos mais secos. Maria Teresa (07) e Helena (15) trouxeram a importância dos mares, lagoas e oceanos das areias costeiras e o cuidado que pensam que devemos ter com os demais seres desses ambientes. Maria Teresa contou como, ao 4 anos de idade, salvou 3 cavalos marinhos que agonizavam numa pequena poça na areia, e como isso afetou pra sempre sua conexão com os seres marítimos.

A terra foi tratada na fala das crianças como uma mãe generosa. O desenho feito com as crianças, uma carta desenhada por suas mãos, baseadas nas ideias e debates feitos durante a oficina, representou essa mãe como uma mulher negra grávida da terra; a terra é um ser vivo que sente e que tem espiritualidade.
De culturas diferentes: indígenas, quilombolas, afro-brasileiras, migrantes, das cidades, periferias e das zonas rurais, as crianças trouxeram na sua cor de pele, nos movimentos e nas experiências um Brasil com territórios diversos. Também trouxeram elementos de seus biomas em sementes, conchas de mar, areia da praia, folhas recolhidas do chão de seus territórios, especialmente para esse momento de troca. Trouxeram as brincadeiras e jogos que fazem em suas matas, becos, praias, quintais, campos, floresta, aldeias. As crianças e adolescentes, brincaram, cantaram, tocaram instrumentos, dançaram e conversaram muito entre si, e mostraram como são fazedoras de cultura, e confirmaram que têm muito a dizer e a fazer para construir o mundo que sonhamos. De muitas outras falas potentes e reflexivas, na sua forma de interagir entre elas e conosco, as crianças trouxeram ideias que foram debatidas numa sessão especial com a Ministra da Cultura, Margarete Menezes, que as ouviu com cuidado e carinho que merecem as crianças. Suas ideias serão levadas a COP 30. Deixo as próprias crianças falarem.

“Onde eu mais gosto de brincar é no rio, mas agora a gente não pode mais, porque o rio está sujo, está poluído” – Iasyara (imagem ao lado)
“Queremos um lugar melhor para todos” – Helena
“O mundo feliz é de muitas árvores onde as crianças brincam” – Athos
“A terra sonhada é uma terra que ninguém passa fome!” (Athos, Helena, Eduarda,
“Quando estivermos próximos da extinção, não vai mais ter tempo de cuidar. 
O tempo de cuidar é agora.” – Maria Teresa
“A natureza pra gente é sagrada” – João Kamau
“A gente fica muito feliz e agradece a hora sagrada que a gente tem pra brincar” – Iasyara
“Tem que ter um espaço natural para as crianças fazerem o que elas querem, sem ser barradas de brincar.” – Zulu
“Estou aqui representando a terra, o mar, e os rios” – Maria Teresa
“Temos que mostrar que a terra está em nossas”- Zulu
“O Mundo feliz é de muitas árvores onde as crianças brincam” – Athos
“A árvore em frente da nossa casa doa tanta coisa: sombra, folha, fruta… mas mais que tudo, sementes. As folhas parece que dão carícias na cabeça. Por isso a gente a chama de árvore carinhosa” – Zulu
“Dou valor as plantas que criam adubo para outras plantas” – Joicie
“Onde eu mais gosto de brincar é no rio, mas agora a gente não pode mais, porque o rio está sujo, está poluído. A gente tem que cuidar do rio como uma pessoa” – Iassyara
“Da Natureza eu uso a folha de Com o banho de folha, eu relaxo o corpo” – João
“O que eu gosto da natureza é de brincar com barro, com areia, com sementes. A gente faz bolo, chocolate, barbante… e brinca!” – Estefánia
Eu quero repensar! – Laura
Eu quero ver – Violeta
Para mim, tem que ter um campo preservado onde as crianças sempre possam brincar! – Luiz
Se a gente só construi prédios, o que vamos ter? Cubículos onde as crianças ficam. Tem quer ter um espaço natural para as crianças fazerem o que elas querem, sem ser barradas de brincar. – João
A minha terra sonhada é uma terra onde as crianças têm liberdade para brincar – Zulu e Helena.
Trazendo a questão do racismo ambiental, e se opondo às formas de discriminação, as crianças propõem mudar a forma como se conta a história: falar e aprender sobre as culturas africanas, indígenas, quilombolas, rurais e todas as que formam o Brasil. Queremos aprender com nossos ancestrais e com a natureza.
“Queremos contar a história verdadeira do Brasil.” – Eduarda
“Precisamos falar mais sobre os povos originários e as diferentes culturas no Brasil” – Helena
Estiveram presentes diferentes autoridades, e elas fizeram questão de ouvir as crianças. No dia 09/10 Marcia Rolemberg, Ministra Macaé Evaristo, na abertura do evento, falaram da impotência da cultura para as infâncias e a importância das infâncias para a cultura. No dia 10/10, a ministra Margarete Menezes recebeu as crianças da Terra Sonhada e ouviu delas seus desejos e dificuldades. Pedimos juntas que o Ministério da Cultura e outros ministérios criem políticas permanentes para acolher bebês, crianças e adolescentes como fazedores de cultura, reconhecendo a Cultura Infância como parte essencial da vida e da natureza. As crianças falaram do emparedamento das infâncias e apontaram soluções baseadas no convívio com a natureza, com a demarcação dos territórios e com o combate a exploração da terra.


Sugeriram criar programas permanentes onde as culturas das infâncias e a da natureza sejam Prioridade absoluta – que os direitos das crianças estejam em decisões, orçamentos e ações climáticas; que as políticas públicas incorporem a perspectiva da infância e da natureza em todos os setores, de modo transversal e intersetorial; que promova o desenvolvimento integral de todas as crianças, prestando atenção às crianças mais vulnerabilizadas – quem precisa mais, deve ter mais atenção; Querem que os reconheçam como protagonistas de suas próprias histórias, como agentes de transformação e produtores de cultura e capazes de cuidar e agir pelo planeta – mas deixaram o recado: Não queremos e nem podemos fazer isso sozinhos.
“Queremos brincar subindo em árvores, banhando em rios limpos, colhendo frutos dos pés como nossos ancestrais. Queremos parques, reservas, terras demarcadas e espaços vivos onde o brincar e o cuidar se encontrem”, disseram varias delas.
As crianças e adolescentes do Grupo Terra Sonhada 2025 foram
Wynoã Tukumãí (1 ano e 4 meses) – indigena Amazonas
Laura (5 anos) –  afro urbana RJ
Maria Teresa (7 anos) – cultura oceánica SC
Iasyara (9 anos) – PB – potiguara
Eduarda (11 anos) – RS – quilombo urbano
João Kamau (11 anos) – Bahia/ criança de terreiro
Joisi Franyelis (14 anos) – Roraima/ Indigena Warao, migrante
Athos Henrique (12 anos) – Pará / vive na TI Gavião
Violeta Bandim  (7 anos) – SP / Area urbana
Estefani Luiza (10 anos) – Viçosa/MG – quilombola
Helena Iara  (15 anos) – Santa Catarina – área costeira
Luis Antonio (10 anos) – RJ – criança quilombola
Eduardo  (10 anos) – RJ – periférica urbana
Francisco  (13 anos) – SP – afro-brasileiro da área urbano
Especialmente inspirados nos modos de viver das infâncias e na sua capacidade de inventar, brincar e renovar a cultura, vemos a chave para um outro mundo possível, onde natureza e cultura são conjugadas juntas e onde os adultos se engajem nas mudanças que precisamos fazer no planeta.
Como elas nos dizem, Defender a Terra é defender a vida: a nossa e a de todas as crianças que virão. Temos força, temos voz e queremos agir. Chamamos os adultos a agirem conosco, não depois – agora.
Por que a infância (dessas crianças) é agora e não amanhã. E a infância é diversa assim como as culturas.
Que sigamos ouvindo as crianças e fazendo políticas inclusivas com e para elas. O presente merece e as infâncias do agora merecem, e a mãe terra também não tem mais tempo de esperar. E para finalizar “a minha terra sonhada é uma terra onde posso sonhar.”
Por Rita da Silva.

