O nascer entre os Ninam: povo Yanomami​

Por Rita da Silva

Analice e uma amiga vieram com os filhos numa viagem de canoa desde a Terra Indigena Yanomami para participar da Caravana das Mulheres Indígenas, promovida pela ANMIGA (APIB) em Boa Vista, Roraima. O evento aconteceu em julho de 2022, antes das reportagens nacionais anunciarem a situação catastrófica dos Yanomamis frente ao garimpo e ao abandono do governo nacional vigente naquele ano. Convidada para representar as mulheres do seu grupo, Analice veio denunciar a situação do garimpo na sua terra, mas também fortalecer a luta das mulheres indígenas por direitos e participar da discussão sobre a importância das candidaturas de mulheres indígenas na política.

Yanomami do subgrupo Ninam, Aná, como prefere ser chamada, diz que seu grupo vive com outros grupos na Terra Indigena Yanomami. Esse dado está presente ainda no relatório Território e comunidades Yanomami Brasil-Venezuela, realizado pelo ISA e organizações indígenas como a Hutukara Associação Yanomami. O relatório indica existirem aproximadamente 665 aldeias Yanomamis entre o Brasil e a Venezuela. Essas comunidades fazem parte de um conjunto cultural e linguístico composto de, pelo menos, quatro subgrupos adjacentes que falam línguas da mesma família: a yanomae, yanõmami, sanima e ninam, cada qual com dialetos distintos. Juntos, compõem um grupo linguístico importante, considerado uma das 10 maiores etnias indígenas do Brasil. Atualmente estima-se existirem entre 26 e 35 mil mil habitantes Yanomamis, em pelo menos 255 aldeias só no Brasil.

Os Yanomamis formam uma sociedade de caçadores-agricultores que têm uma profunda conexão espiritual e prática com a terra-floresta, a urihi, de onde também vem seu sustento, manejando mais de 160 espécies. Vivendo na floresta tropical do Norte da Amazônia, hoje demarcada como Terra Indigena (TI) Yanomami, seu contato com a sociedade nacional é recente.

Analice na Caravana das Mulheres Indígenas realizada em Roraima fala sobre o impacto do garimpo na sobrevivência do povo Yanomami

Chegando a Boa Vista, Aná, falou para as demais mulheres do evento sobre o sofrimento com a ocupação do garimpo, que tem impossibilitado o bem viver e a continuidade dos rituais e do bem nascer do seu grupo.

Na entrevista concedida a equipe da Usina da Imaginação para o MIMUS, Aná fala sobre técnicas do parto tradicional do seu povo. Nesse processo de dar a luz, a relação com os elementos da natureza e floresta possibilita um parto mais fácil e sem dor. Explica em língua materna que normalmente eles acatam que uma mulher que já pariu anteriormente pode parir sozinha na mata ou na casa: “Ela dá conta sozinha do parto”, diz ela. Quando a mulher tem dificuldade, as demais ajudam; entendem que nem sempre é fácil parir: “Tem gente que sofre muito, que demora”, mas o normal é que as mulheres deem conta do parto sozinhas.

Segundo Aná, quando a mulher engravida pela primeira vez, as demais mulheres do grupo dão atenção especial a ela porque acreditam que terá mais dificuldades no parto se não estiver preparada. No dia do parto, preparam o chão com folhas de bananeira para receber a criança e vão apoiar no necessário. No momento em que ela começa a sentir as contrações do parto, elas fazem um fogo baixo debaixo da rede em que ela está deitada e colocam perto dela animais que tem facilidade de parir sem dor e sem ajuda como a paca. Raspam a cabeça de uma paca e dão chás para ela parir mais rápido.

Uma mulher muito nova pode passar cinco dias em trabalho de parto e por isso elas se preocupam com a gravidez precoce. Educam as meninas para esperar iniciarem a vida sexual para não serem mães muito cedo, porque além de perigoso entendem que é muito trabalho e responsabilidade ser mãe, e precisa estar preparada. Assim, orientam as meninas para esperar amadurecer o corpo e adquirir conhecimentos especiais para poder cuidar bem da criança e se cuidar nessa nova fase. Mas quando acontece, acolhem a jovem mãe e apoiam no desenvolvimento da sua maternidade e ajudam a cuidar da criança e fazem especial acompanhamento no parto.

Se o parto demora muito, chamam o pajé, e ele coloca um tipiti e ajuda com benzimentos para o parto. Outra maneira de induzir o parto quando demora muito: começam a desmanchar a flecha que o marido da parturiente caça, tirando as penas dos pássaros.

Não deixam as crianças novas participarem ou estarem próximas na hora do parto para elas não “pegarem a dor da mulher que está parindo” e assim não sofrerem também – se elas vivenciam a dor da outra podem ficar com medo de ter filhos. Então são as mulheres mais velhas que apoiam o parto.

As mulheres mais velhas fazem um mingau para fortalecer a mulher na hora do parto. Esse é também um modo de hidratar o corpo. Aná enfatiza que todos cuidam da mulher quando ela está por parir. Cortam o umbigo da criança com um pedaço de flecha, não usam tesoura: uma prática ancestral que segue até hoje. Depois do parto, todas cuidam da mulher e da criança, para que ela possa se recuperar e a criança desenvolver bem. Assim que ela nasce, dá banho e coloca na rede. A mãe tem que descansar. A mãe só pode dar leite materno para o bebe. “Se a mãe não tem leite, damos alimento para ela poder ter leite”, conta. Fazem mingau de macaxeira, de banana, para a criança crescer com o alimento que a mãe come. Depois de dois ou três dias usam de uma técnica que Aná disse ser um um feitiço para a criança crescer logo. Ralam um tubérculo e colocam na água do banho – consideram essa uma vitamina para a criança. Os banhos devem ser feitos de manhã, meio dia e a noite. Assim a criança vai crescendo rápido, forte e saudável.

Depois que a criança desenvolve um pouco e começa a engatinhar, deixam ela bem livre, só cuidando para que não se machuque e não coma sujeira. Só nessa idade que a criança começa a comer caldos de peixe e xibé (mistura de farinha artesanal e água, um importante alimento indigena no norte do Brasil). “Temos muita responsabilidade com a criança,” diz Aná. Nessa fase também se vai tirando o leite materno. Aná diz sorrindo: “A gente quer ver a criança forte, bonita. Se continua muito tempo com o leite materno a criança não se desenvolve mais, e precisa passar a comer outros alimentos para crescer bem”.

Quando a criança está agoniada, chorando muito, a gente pega a criança no colo e canta o canto da festa andando com a criança na tipóia ou no colo.

Segundo Aná, as mulheres decidiram conscientemente não enviar as filhas mulheres do seu grupo para Boa Vista quando elas entram em trabalho de parto. Vários problemas surgem no parto na cidade: além de sofrerem com a dificuldade de comunicar com os profissionais da saúde dos hospitais (nem todos Yanomamis falam portugues e os médicos e enfermeiras não falam línguas indígenas), sofrem com proibições (não podem levar comida para a parturiente, não podem fazer rituais para facilitar o parto). Assim, receber a criança ao seu modo não é possível nas cidades, dificultando a continuidade da cultura de parir e receber nos primeiros dias de vida seus descendentes. Esse racismo do sistema de saúde tem sido um dos grandes problemas enfrentados por diferentes povos indígenas no Brasil: uma forte maneira que a colonização ainda segue.

Os povos Yanomamis vivem em comunidades pequenas, formadas por parentes cognáticos (que advém do mesmo tronco linguístico), com famílias unidas por laços de inter-casamentos repetidos por duas ou mais gerações, idealmente entre os primos cruzados, (filhos das tias maternas ou filhos do tio materno). As famílias vivem em casas comunais em forma de cones ou cone truncado (caso do Yanomamis orientais e ocidentais) ou em aldeias compostas de casas retangulares (norte e nordeste do do seu territórios).

“A dificuldade na nossa comunidade não existia. Existia muita fruta que a gente se alimentava. Mas com o garimpo na terra Yanomami, vem a dificuldade. Antes, havia muita fruta na nossa comunidade. Tinha bacaba, açaí, pupunha e outras frutas. Mas a invasão da nossa terra por garimpeiros faz muito mal. Eles pescam e envenenam os rios. Cortam as árvores frutíferas. Não tem mais comida. Antes havia muito peixe e caça, mas agora não há. Muitos órgãos do governo dizem que protegem, mas agora não liga para o povo Yanomami”, conta Aná.

Seguindo na entrevista, ela expõe a situação no território naquela época, durante o governo que ignorou os chamados dos Yanomamis. Em julho de 2022, “não havia medicamentos nos postos de saúde. Sabem que o rio está envenenado de mercúrio, mas não fazem nada. Nós mulheres, como nossos filhos pequenos, já estamos envenenados. O sofrimento é muito grande. A realidade lá dentro é uma destruição muito grande. Essa precariedade dificulta muito não só a minha comunidade mas todo o território yanomami. Não tá bom pra nós e os órgãos públicos não visitam a gente para saber o que está acontecendo. Assim eu sei que eu tenho que sair da comunidade e ir para as reuniões e os eventos para defender o meu povo”.

Falando sobre a participação no evento Caravana das Mulheres da ANMIGA, Aná diz que “Se me chamam, tenho que participar, pensando nas dificuldades que estão acontecendo lá dentro da comunidade. Por isso que eu me interesso muito – como liderança Ninam – em ir e dizer o que está acontecendo lá. Mesmo sem recurso, eu como mulher liderança tenho que sair e passar esse grande problema, que não se resolve de hoje pra amanhã, mas eu vou continuar no movimento e seguir lutando para melhorar. Se as pessoas visitassem nossa comunidade para ver o problema eles iam se preocupar. Por isso a gente vem: para eles verem e cumprirem a lei. Meu pensamento e minha ação têm que andar juntos. Como liderança, posso apontar onde está o problema e a necessidade.”

Ninam significa pessoas. E é nessa perspectiva que os Yanomamis seguem resistindo e sonhando. E acolhendo os seus.

 

Filhos da terra-floresta​

Aná diz que a pintura que usam é para se protegerem dos espíritos maus que circulam no mundo. “Os pajés pedem para a gente se pintar e a gente se pinta do jeito que ele pede – e as penas que a gente usa é uma cultura – não surgiu agora, é dos tempos dos nossos ancestrais; é de muito tempo – são muito antigas – é a nossa proteção e a nossa identidade – não desistiremos disso e vamos passar para os nossos filhos. E lá no nosso território usamos muito mais que usamos quando saímos dele”.

Os Yanomamis tem uma palavra que agrega território, planeta, terra, floresta e o seu chão, e é também o nome do mundo, o local do seu nascimento: “Uhuri”. Sendo uma entidade viva, uhuri tem uma imagem essencial (urihinari), um sopro (wixia) e o princípio material da fertilidade (në hope). Toda extensão de urihi é coberta por seus espelhos onde todos os espíritos (xapiripe), humanóides em miniatura enfeitados de ornamentos coloridos e brilhantes, brincam e dançam. Segundo o Instituto Socioambielta (ISA), para eles, a urihi é a mata que Omama (uma deidade ou entidade yanomami) deu para vivessem de geração em geração. Nesse sentido, a terra cedida para que morassem é chamada de yanomae thëpë urihipë (floresta dos seres humanos). Logo, proteger a floresta yanomami está profundamente relacionada com o modo como esse grupo se relaciona com a natureza.

Davi Kopenawa, líder e xamã yanomami, afirmou em entrevista à National Geographic que os yanomami e demais indígenas são um dos poucos pilares que ainda sustentam a vida no planeta. “Nossa visão, do povo yanomami, é ficar de olho na nossa terra-planeta. É muito importante, diz ele.

O povo yanomami manteve seu próprio sistema educacional, não aderindo ao sistema escolar nacional, entendendo que a autonomia do seu modo de vida era uma maneira de manter viva sua cultura. Educar crianças se faz no cotidiano do grupo, no contato e na lida cotidiana e em momentos rituais. Por isso, os yanomamis, e entre eles os Ninam, mantêm aspectos culturais muito próprios, produzindo uma infância característica do seu povo. Para preservar essa infância, é preciso seguir respeitando suas tradições e sua autonomia, como pedem as mulheres na carta aberta ao presidente Lula (ISA).

“Queremos viver na floresta viva e bonita. Nós yanomami queremos viver novamente na terra sadia, que é a verdadeira terra-floresta Yanomami. Nós queremos que nossas crianças continuem nascendo bem e fortes. Precisamos de sua ajuda para curar a floresta e também os animais que lá vivem. Queremos continuar vivendo na nossa terra, comer alimentação saudável e beber água limpa”.

 

Rita Oenning da Silva é antropóloga com especialidade em desenvolvimento da primeira infância, cineasta e fundadora da Usina da Imaginação e da Produtora Flor do Vento. Atua há mais de 20 anos com crianças e comunidades de diferentes contextos culturais, desenvolvendo projetos criativos que inspiram e transformam o mundo de forma positiva.

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