Por Natália Corrêa
Durante a minha primeira experiência como repórter do FavelaNews no Recife – canal de comunicação popular da Usina da Imaginação -, eu conheci a comunidade Beira Rio. Localizada na beira do canal do Arruda, um bairro de periferia na zona norte da cidade, o conjunto habitacional foi entregue, depois de muita espera, à população que vivia à margem do Rio Beberibe e que sofria todos os anos com enchentes. Mais de 300 famílias das comunidades de Chão de Estrelas e Campina do Barreto foram beneficiadas com o residencial.
Recordo que fizemos uma matéria sobre a relação de alegria e tristeza que a mudança representava para aquelas famílias. A alegria de ter finalmente uma casa nova, protegida da chuva, e ao mesmo tempo a tristeza de abandonar um lar cheio de lembranças que, boas ou ruins, faziam parte de sua história. De certa forma, uma parte da identidade daquelas pessoas ficou soterrada nos escombros e nas palafitas que ficaram abandonadas.
Tudo isso, entretanto, nós entendemos considerando a perspectiva dos adultos. Na época, não nos ocorreu pensar ou refletir sobre o que aquela mudança significava para as crianças. Muitas delas, ainda bebês de colo, cresceriam na nova casa sem saber ou lembrar dos dias vividos no leito do Beberibe. Para elas, aquele seria o lar que elas se recordariam e teriam saudade no futuro, se um dia partissem.
Acontece que um conjunto habitacional é diferente da favela como conhecemos, onde as casas, cheias de personalidade, vão sendo construídas uma a uma pelas famílias que vão chegando e ocupando. Um conjunto habitacional é construído por uma construtora e entregue pela prefeitura pronto para ser habitado, totalmente padronizado. No caso do conjunto habitacional do Beira Rio, que é formado por prédios, todos os apartamentos são iguais, exceto talvez pela posição de alguns cômodos e pela vista de algumas janelas (a maioria dá para o mesmo pátio). Mas como essa padronização impacta na construção de identidade das crianças?
Anos depois, em uma das edições da Festa dos Becos, um evento que era realizado periodicamente pelo FavelaNews com o objetivo de agregar as comunidades através de atividades culturais, eu voltei ao conjunto Beira Rio para fazer uma oficina fanzine com as crianças. Comecei pedindo que cada criança fizesse um autorretrato para compor a página da “turma da Beira-Rio”, em seguida pedi para que desenhassem suas casas.
Havia um padrão nos desenhos: apesar de viverem em prédios, desenharam aquela tradicional casa de telhado triangular e praticamente todas as casas desenhadas tinham o número em destaque.
Fiquei pensando nisso por longas horas: na importância da identidade e da individualidade. Na favela é comum que o coletivo e o privado se misturem. Se por um lado a rua é um grande quintal compartilhado por todos, o sonho e o orgulho da “casa própria” são sentimentos muito fortes no ambiente comunitário e se manifestam também no imaginário das crianças.
Não é a toa que todas elas desenharam a mesma cor. Todo mundo já desenhou uma casa assim, porque essa é a ideia de casa que a gente aprende desde cedo na escola, nos desenhos animados, na televisão. Mas, no fim, mais importante do que ter uma casa com telhado, porta e janela, é se sentir em casa.
Por mais que pareçam idênticas, cada casa na Beira Rio é única. As crianças expressaram isso com números, mas poderia ser uma cor na parede, uma toalha de mesa ou até mesmo o cheiro de feijão puxado no cominho. Mesmo o menor detalhe pode ser suficiente para transformar um simples residencial padronizado em um verdadeiro lar. E isso importa.