Cuidar e aprender nos terreiros

Por Christiane Falcão

As casas tradicionais de matriz africana são espaços de cuidado para toda a comunidade; sejam cuidados espirituais, sociais e materiais. São cuidados do corpo, da mente e do espírito. As comunidades em seu entorno muito acionam as casas para práticas de saúde integral bem como para apreciar expressões culturais de matriz africana e como fonte de atenção e assistência social. Estando as casas de matriz africana geralmente em comunidades de baixa renda, a coletividade é um valor central.

Como não poderia ser diferente, o cuidado com as crianças nesses espaços possui as dimensões do material e do espiritual. Lá, as crianças são cuidadas por pessoas e orixás, dentro e fora dos xirês e das obrigações regulares. Elas reconhecem a partir de uma mesma matéria a presença de uma pessoa da família ou a presença de uma entidade, e qual cuidado receberá a partir disso. Tecnologias de cuidado espiritual estão lado a lado com práticas e técnicas mais comuns na sociedade nacional; são complementares. Benzimentos, banhos, alimentação compartilhada são formas de cuidado específicas das casas de matriz africana, e são aprendidas e passadas de geração a geração. Crianças maiores cuidam de passar para crianças menores, e para adultos também. Aprender ali é sobre observar, tentar e fazer. Nossa ideia ocidental de criança é renovada, porque um aprendiz, seja ele de qualquer idade biológica, é algum com conhecimento em desenvolvimento

As crianças aprendem esse vocabulário de ser e estar no terreiro e ensinam até aos adultos, com a autoridade de quem sabe do que fala, pois já viu e ouviu de muitas formas.

Os orixás também cuidam, maternam e paternam as crianças, seja na proteção no plano espiritual, seja carregando-as nas rodas ou ensinando com a vida no ayê as tradições em forma de dança, música e gestos. São aprendizados experimentados no dia a dia, nas festas e nas funções da casa, com uma sistemática própria e naturalizada pelas crianças. É comum termos crianças ainda de colo sabendo o ilá de um orixá específico porque ela demonstra sem medo de sabê-lo. O medo como o constrangimento não faz parte do leque de referências de vida.

A construção da pessoa então passa pelo entendimento de que é preciso aprender tudo de novo, desde os abiãs, noviços nas tradições, até os yaôs, pessoas em processo de constituição, chegando aos ebomis, constituições mais sólidas da pessoa. Todas essas fases da feitura de alguém na tradição ketu requerem cuidados diferentes. As crianças aprendem esse vocabulário de ser e estar no terreiro e ensinam até aos adultos, com a autoridade de quem sabe do que fala, pois já viu e ouviu de muitas formas. Assim, elas se sentem protegidas e cuidadas, dentro de casa, fazendo parte de uma comunidade de pessoas. Isso confere autoestima, pertencimento e assertividade que muitas vezes são valores pouco experimentados nas pedagogias ocidentais.

Christiane Rocha Ciovana Falcão é mãe e militante antirracista, atua como consultora em políticas públicas de promoção da igualdade racial e de gênero. Especialista em Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais e mestra em Antropologia.